sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

etnologia da solidão


trago um grande cansaço de ser tanta coisa.
chegam os retardatários do princípio,
e de repente impaciento-me de esperar, de existir, de ser,
vou-me embora brusco e notável ao porteiro que me fita muito mas rapidamente.

regresso à cidade como à liberdade.

vale a pena sentir para ao menos deixar de sentir.



[vai pelo cais fora - álvaro de campos]


.:.

I
nessa torrente de subjetividade correm tantas águas que às vezes é difícil não me deixar levar.

eu sinto muita coisa.
eu sinto tanta coisa que às vezes preciso me multiplicar para dar conta. [obrigada, adelaide.]
e nesses dias em que nada passa e, ao mesmo tempo, que tudo aqui dentro acontece, percebo minha boca mais áspera, meus olhos mais secos.

II
neste lugar nada passa, tudo permanece onde sempre esteve.
meu rosto está em toda parte, sou vista de todos os ângulos e o silêncio pediu exílio.
aqui, onde minha história particular grita nos muros, nas esquinas e nas praças, meu coração não tem sossego.
o Eu estou comigo o tempo todo, sofro com a perseguição do ego. aqui, onde estão os retardatários do princípio, é impossível me desvencilhar de mim.
e aqui é que a minha visão do espelho se carrega de cores e notas de dramaticidade.
o Eu sou assim, precisamente assim, e já não posso mais ser.

ver tantas versões de mim circulando em um lugar tão restrito me dá náusea, me movo e sinto as correntes que ainda restingem os meus movimentos.
é preciso regressar à cidade. farei isso como quem se reconcilia com a possibilidade de ser outra coisa. é preciso regressar à liberdade.

quando fizer isso, quando tiver retornado da viagem, estranharei de novo o idioma pouco conhecido e também o clima, com o qual ainda não me adaptei complemente.
mas já aprendi a amar o seu ritmo - a velocidade de suas engrenagens, as curvas de suas galerias, a rudez das mãos que te tecem.
na cidade às vezes me sinto um pouco sozinha, solitária, estrangeira e forasteira.

III
na cidade às vezes me sinto um pouco sozinha, solitária, estrangeira e forasteira.
só os esboços da minha história particular estão estampados em seus muros.
seu concreto é impiedoso com a torrente da minha subjetividade, ele não absorve.
então minhas contradições ficam expostas e demoram a evaporar.
na falta do solo poroso do meu lugar de origem, que invasivamente me traga, as minhas águas se tornam violentas - me lavam, me diluem, me afogam.

IV
agora que boio nessa torrente seguro, nas mãos, o relicário. dentro dele está o ponto de apoio íntimo.
seguro-o firme. nem força da torrente, o cinza dos muros ou a frouxidão rotineira das minhas mãos me farão perder o relicário.
aí ele só poderá se perder se não tiver decantado o suficiente e ser ainda tão fino ao ponto de passar entre os dedos.


.:.

[etnologia da solidão é uma série de fotografias do baiano marcelo reis.
a foto acima é dele, seu contato é www.casadaphotographia.art.br]

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