sábado, 28 de novembro de 2009

o meu hábito vital de descrença em tudo, especialmente no instintivo, e a minha atitude natural de insinceridade, são a negação de obstáculos a que eu faça isto constantemente.
no fundo o que acontece é que faço dos outros o meu sonho, dobrando-me às opiniões deles para, expandindo-as pelo meu raciocínio e minha intuição, as tornar minhas e (eu, não tendo opinião, posso ter as deles como quaisquer outras) para as dobrar a meu gosto e fazer das suas personalidades coisas aparentadas com os meus sonhos.
de tal modo antepondo o sonho à vida que consigo, no trato verbal (outro não tenho), continuar sonhando, e persistir, através das opiniões alheias e dos sentimentos dos outros, na linha fluida da minha individualidade amorfa.
cada outro é um canal ou uma calha por onde a água do mar só corre a gosto deles, marcando, com as cintilações da água ao sol, o curso curvo da sua orientação mais realmente do que a secura deles o poderia fazer.
parecendo às vezes, à minha análise rápida, parasitar os outros, na realidade o que acontece é que os obrigo a ser parasitas da minha posterior emoção. habita o meu viver as cascas de suas individualidades. decalco as suas passadas em argila do meu espírito e assim mais do que eles, tomando-as para dentro da minha consciência, eu tenho dado os seus passos e andado nos seus caminhos.
em geral, pelo hábito que tenho de, desdobrando-me, seguir ao mesmo tempo duas, diversas operações mentais eu, ao passo que me vou adaptando em excesso e lucidez ao sentir deles, vou analisando em mim o desconhecido estado de alma deles, fazendo a análise puramente objectiva do que eles são e pensam. assim, entre sonhos, e sem largar o meu devaneio ininterrupto, vou, não só vivendo-lhes a essência requintada das suas emoções às vezes mortas, mas compreendendo e classificando as lógicas interconexas das várias forças do seu espírito que jaziam às vezes num estado simples da sua alma.
e no meio disto tudo a sua fisionomia, o seu traje, os seus gestos, não me escapam. vivo ao mesmo tempo os seus sonhos, a alma do instinto e o corpo e a atitude deles. numa grande dispersão unificada, ubiquito-me neles e eu crio e sou, a cada momento da conversa, uma multidão de seres, conscientes e inconscientes, analisados e analíticos, que se reúnem em leque aberto.



. fernando pessoa . o livro do desassossego .

segunda-feira, 23 de novembro de 2009



dos cigarros ela havia perdido a conta. cada trago rasgava o peito aliviando.
sabia que ainda tinha o que organizar, talvez não mais por dentro. a alternativa mais concreta parecia ser o expurgo. a organização factível seria o expurgo.
o peito ainda pingava. eram as últimas gotas, [in]felizmente.
e o que ela poderia dizer? já não havia o que ser dito, contado, explicado. sabia que o protagonista agora seria o passar dos dias. e ela se perguntava: quanto tempo mais esse peito será capaz de pingar?
'ai, aperta esse nó ou desata de vez!' - quem ouviu? ecoou no vento, tropeçou no tempo.

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aperta esse nó ou desata de vez, que a gota d´água já está a caminho!
mesmo a contra gosto. mesmo ela gostando da gota, de cada gota. cada momento lembrado se dissolvia nesse peito-conta gotas, assim feito homeopatia.
o não-envolvimento chegava, em doses homeopáticas.


e depois de dois cigarros ela precisava dormir.

domingo, 22 de novembro de 2009



foi na boca que ela sentiu o gosto do ferro que feriu o peito.

estava cansada - o corpo, os olhos e a cabeça. pensou que era melhor ir devagar, mais devagar.
sonolenta, preguiçosa e resignada. respirou fundo, seu peito funcionava agora como conta-gotas, aquele envolvimento iria esvair-se, aos poucos, lentamente - ela sabia disso. cada momento lembrado se dissolvia na lágrima, que teimava em descer. o peito paria aquilo tudo, expulsava, expurgava, mesmo a contra gosto.
já não há nada a ser feito. diante disso se sentia calma, já não dependia dela. mas se sentia também de mãos atadas. de mãos e de peito atados.

conta-gotas . . .. .. ..... . ... . . . . .. . . . .... .. . . . . ..... .. . ..... . .
quantas gotas foram? contra gosto.
quantas gotas faltam? eu gosto da gota.
quantas sobraram? quantas sobrarão?

ai, aperta esse nó ou desata de vez!!
que a contra gosto não quero. que, assim, à conta gota a gota seca.


ai, aperta esse nó ou desata de vez!
quantas gotas ainda faltam?


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pode ser a gota d´água.

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segunda-feira, 16 de novembro de 2009

aquilo que me atropela é necessariamente maior do que eu?
acho que vou dormir pensando nisso.


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é pau, é pedra.
no meio do caminho tinha um pau e uma pedra.
essa é a visão das minhas retinas já tão fadigadas por esse mundo todo vivo.
não há caco, pedaço ou retalho, nessa torrente de subjetividade, que possa permanecer entre a cruz e a espada.
é preciso partir, andar.


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agora já não falta nada.
sim, entender o outro é preenchê-lo de um conteúdo meu.
que faça com que o outro assuma algum significado pra mim, passível de leitura, de entedimento, de digestão.


ah, que ir entendendo é um ir doendo!
o entendimento é uma dor.

sábado, 14 de novembro de 2009


entender é um identificar a forma que o outro deu e um preencher de um conteúdo seu.


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[quando eu choro é uma enchente surpreendendo o verão
é o inverno, de repente, inundando o sertão]

domingo, 8 de novembro de 2009




nada vai manter o meu coração refém.


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[ a seta e o alvo - paulinho moska ]

quarta-feira, 4 de novembro de 2009


cicatrizar é um ir fazendo-se


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segunda-feira, 2 de novembro de 2009





pernas de pinça, corpo de lança
e finge que voa.

braços de linha e cor de tempero.




me sinto magra, leve e calma.

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[não quero a faca, nem o queijo. quero a fome.]

adélia prado

sábado, 31 de outubro de 2009

de pé encaro o pavor de estar indelimitada. não há fronteira entre eu e o que está fora de mim.
sou uma subjetividade sem forma.
sim, terei a coragem não inventar alguma de antemão. que ela se estabeleça como uma crosta que por si mesma endurece.

rígida e sem fôlego.
mal disposta e mal colocada. inadequada, partida, parida.


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resignada sei que dessa avalanche há que de emergir algum sentido.
e desses cacos, pedaços e retalhos restará uma sobrevida.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009







que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
- o que eu vejo é o beco.


.:manuel bandeira:.



na ida daqui até ali tropeço nas mais obtusas obviedades.
no peito a vontade de crescer dez metros e explodir. e a incômoda sensação de cordas e nós tensionados à minha volta é inevitável.



[é o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é a doce herança itabirana.]
- drummond -

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o estado febril passou.
o que resta agora é o cansaço do corpo doente.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009


depois de dias de tremor [de terror] pude, finalmente, entender que a calma tem sim uma dimensão temporal.
vez por outra, em momentos latejo agudo, do ardido e inconstante pulsar, admitir a íntima e quase promíscua relação entre a calma e o passar do tempo é como uma batalha aberta.
mas, repentinamente, por efeito do [re]fazer-me e do próprio tempo, essa relação me pareceu natural como abrir os olhos e ver.

do tempo sempre entendi pouco.
do tempo sempre aceitei pouco.

é chegada a hora, pois, de me reconciliar com ele.



[sempre gostei de arrumar. suponho que esta seja a minha única vocação verdadeira. ordenando as coisas, eu crio e entendo ao mesmo tempo. (...) arrumar é achar a melhor forma.]
. a paixão segundo g.h. .:. clarice lispector .

quinta-feira, 22 de outubro de 2009


os dias passam como batalhas.
com uma grande e pesada arma de caça em punho, dou o passo seguinte.
vou abatê-los um por um. que comece a temporada!

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enquanto isso sou um dia nublado.

sábado, 17 de outubro de 2009


a quantidade de ruidos só me deixa mais confusa. som da tv, a agitação da criança, a conversa na cozinha e o ronco da mãe no sofá. preciso de silêncio. a sensação é de tempestade, terremoto. isso por fora.
por dentro tudo é nublado. constante ressurgência de sentimentos incompletos.

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[finalmente encontrei uma definição. estranho que tenha sido tão natural pensar nisso agora.
o dia todo tentei definir e agora surgiu de repente.
é isso! o que sinto são sentimentos incompletos. não há tristeza que me faça chorar, nem incômodo que faça com que eu me mova.
me sinto lacônica e simples. mas preciso [me] encontrar.
não há caco, nem pedaço, nem retalho que preencha essa grave lacuna.]

quarta-feira, 14 de outubro de 2009


não sei dizer do todo. não sei dizer da totalidade nem da completude.
mas me reconheço em cada caco, em cada pedaço de mim (!), em cada metade, terço.
retalhos diferentes, mal cortados que só assim poderiam me formar maltrapilha, mil trapilha.
cacos, pedaços e retalhos que todos juntos são maiores do que eu. não posso suportar o peso daquilo que não [me] cabe [em mim]. por isso preciso me contar, nos jornais, no mundo e nas livrarias. preciso de todos.

preciso sobretudo retomar um antigo hábito de me organizar em palavras.
tentar traduzir em fórmulas simples coisas que às vezes nem é possível dizer.

é preciso assentar. é preciso retomar a tranqüilidade.
é preciso ordenar o que há por dentro.

agora só vejo os cacos. agora só vejo os pedaços.
e retalhos.
é preciso retomar a linha, o norte, o rumo.

que comece o corte e a costura.