quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

estar ali significava libertação. libertar-se de si, sobretudo. libertar-se da sua teimosia. a inutilidade de persistir era verificada a cada dia. e ela se dava conta disso a cada instante recortado e preto-e-branco.
o veludo vermelho a fazia lembrar de como as coisas se passavam intensamente por dentro. ela se sentiu viva e lembrou que a sua presença costumava ser estardalhante. o alívio veio, na veia de quem deixou o cansaço e a velhice do Eu de lado.
ela sorriu. e quase que instintivamente sentiu-se dona de si e do seu caminho. era bom estar ali. por um momento saiu do Eu e se incomodou com a demora. a demora sempre a incomodava, mesmo quando se tratava de assuntos de si mesma, de si própria, do Eu e do universo com novo significado. olhou para o lado: um casal de meia idade. as marcas no rosto da mulher lhe deram a impressão de que há muito tempo eles se afastaram dos sonhos iniciais, e não permitiram que outros sonhos chegassem. eles se escondiam um do outro. a relação que mantinham parecia algemá-los. um no outro e os dois na rotina.
de volta ao Eu e, portanto, fora de si, ela retomou o processo de libertação. pensou que isso fosse transcender. ela conseguiu nomear o que buscava e se sentiu menos presa por isso. ela queria brilhar ao lado de mais quatro estrelas. seriam, então, cinco. cinco estrelas brilhando. esse brilho representou o desejo imenso de sentir algo intenso. sentiu. ansiava por sentir-se livre. e se questionou quanto a intensidade o ser. entendeu que intenso mesmo era sentir e que a liberdade viria depois, quem sabe. suspirou. sentiu de forma intensa e foi livre, por não mais que três segundos.
forte, foi assim que ela se definiu. tão forte quanto um bruce lee, desses do maranhão. a sensação de ser livre era mais incômoda. ela escolheu a liberdade ao invés da força. e foi livre outra vez. se imaginou numa estrada. decidiu se danar naquela estrada, mundo a fora e ir embora. mas ela não saiu do lugar. era a estrada do Eu, os meandros de si.
entendeu que ser livre era processo. e estar ali era o veredicto para que o fosse. o Eu disse a ela que ambos eram sozinhos. o que era bom. era bom porque era recíproco. o Eu era sozinho dentro si e dentro dela. e ela não fazia companhia a si mesma. foi livre outra vez.
nomeou outra coisa que queria. ela ansiava por uma companhia. alguém para dividir músicas, nóias, amigos e mapas de tesouros encantados. olhou para o lado de novo. não queria acabar como aquele casal, algemado e rotineiro. percebeu que o queria mesmo era momentos de encontro e decidiu pensar sobre isso mais tarde.
as luzes se apagaram e ela se esqueceu de si e do Eu. se esqueceu também do que queria. se esqueceu da liberdade. começou o filme: “lisbela”. o prisioneiro ficou do lado de fora.



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texto de 12.02.05


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terça-feira, 19 de janeiro de 2010



ela tinha razão, o não-envolvimento chegara em doses homeopáticas.
e chegara na precisa medida em que cada momento lembrado se dissolvia naquela torrente de subjetividade.

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nadava tranqüila. aprendeu que não há particular importância de qualquer envolvimento que não possa ser dissolvida, à milésima parte, nessa torrente de subjetividade. assim, o que resta é a memória do princípio ativo dos envolvimentos particulares, homeopáticamente adquiridos.


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domingo, 17 de janeiro de 2010

aquele ainda era um lugar estranho.
ao caminhar pelas calçadas sentia uma naúsea suave quando olhava para baixo e via
seu par de tênis sujo se misturar naquilo que parecia um mar de passos apressados.

sentia-se pequena.

pôde se organizar - o ritual, tão pessoal e particular, de organizar seu habitat duraria ainda semanas, meses. era o crescimento do Eu, egotropismo.

as esquinas e as ladeiras do lugar ainda estranho prometiam uma boa safra.
seriam tempos melhores. estava ansiosa por isso.

olhou para os tênis sujos, agora jogados indisciplinadamente no meio do quarto.
eles estavam ali, era sinal de familiaridade.


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[e no entanto foi nesse momento que perdi a paixão. de fato, a última coisa que eu queria era escrever. para mim, isso teria significado voltar-me para meu íntimo, atentar para uma vida e um período nos quais eu detestava pensar. eu estava tentando esquecer a china. fui instantaneamente arrebatada pelo lugar onde chegara, que me parecia outro planeta, e só queria passar cada minuto embebendo-me daquele novo mundo.]

. jung chang . cisnes selvagens .

sábado, 9 de janeiro de 2010


respirou fundo e fechou os olhos lentamente.
numa sucessão desordenada de flashes visitou os acontecimentos dos últimos meses.
suspirou, abriu e fechou os olhos, sorriu. pensou nas inúmeras coisas que teria que resolver no outro dia. teria que organizar o quarto, dobrar as roupas, ordenar seu habitat - esse era seu ritual mais pessoal e particular.

o gosto do ferro que lhe feriu o peito ainda não havia deixado a boca.
mas a teimosa sensação de cansaço já não a acompanhava mais. sorriu quando se deu conta disso.
sua subjetividade boiava tranqüila na torrente de sensações que tempos atrás quase lhe afogou.
os hematomas e os arranhões davam lugar à pele macia e hidratada. o ambiente familiar completava o clima favorável à organização. sentia-se como um doente saindo da enfermaria, curado e ciente de seu estado ainda delicado.
sentia sede. levantou-se e bebeu um copo enorme de água. sorriu ao sentir o cheiro de barro que vinha daquele filtro. mergulhou numa ressurgência de boas lembranças que se apresentavam pra ela muito mais sob a forma de aromas do que de imagens. aromas cítricos e frescos. sorria de modo discreto e sincero. bebeu mais um gole d´água, suspirou. parou em frente à sacada e amou a vista conhecida. os pés descalços sobre a ardósia fria lhe davam a sensação de estabilidade. foi pra cama, pensou nos aromas, no gole d´água, na vista da sacada e no piso de ardósia. estava em casa, redescobrira o acesso a si mesma. dormiu rapidamente, o outro dia era dia de organizar-se.

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