sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

etnologia da solidão


trago um grande cansaço de ser tanta coisa.
chegam os retardatários do princípio,
e de repente impaciento-me de esperar, de existir, de ser,
vou-me embora brusco e notável ao porteiro que me fita muito mas rapidamente.

regresso à cidade como à liberdade.

vale a pena sentir para ao menos deixar de sentir.



[vai pelo cais fora - álvaro de campos]


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I
nessa torrente de subjetividade correm tantas águas que às vezes é difícil não me deixar levar.

eu sinto muita coisa.
eu sinto tanta coisa que às vezes preciso me multiplicar para dar conta. [obrigada, adelaide.]
e nesses dias em que nada passa e, ao mesmo tempo, que tudo aqui dentro acontece, percebo minha boca mais áspera, meus olhos mais secos.

II
neste lugar nada passa, tudo permanece onde sempre esteve.
meu rosto está em toda parte, sou vista de todos os ângulos e o silêncio pediu exílio.
aqui, onde minha história particular grita nos muros, nas esquinas e nas praças, meu coração não tem sossego.
o Eu estou comigo o tempo todo, sofro com a perseguição do ego. aqui, onde estão os retardatários do princípio, é impossível me desvencilhar de mim.
e aqui é que a minha visão do espelho se carrega de cores e notas de dramaticidade.
o Eu sou assim, precisamente assim, e já não posso mais ser.

ver tantas versões de mim circulando em um lugar tão restrito me dá náusea, me movo e sinto as correntes que ainda restingem os meus movimentos.
é preciso regressar à cidade. farei isso como quem se reconcilia com a possibilidade de ser outra coisa. é preciso regressar à liberdade.

quando fizer isso, quando tiver retornado da viagem, estranharei de novo o idioma pouco conhecido e também o clima, com o qual ainda não me adaptei complemente.
mas já aprendi a amar o seu ritmo - a velocidade de suas engrenagens, as curvas de suas galerias, a rudez das mãos que te tecem.
na cidade às vezes me sinto um pouco sozinha, solitária, estrangeira e forasteira.

III
na cidade às vezes me sinto um pouco sozinha, solitária, estrangeira e forasteira.
só os esboços da minha história particular estão estampados em seus muros.
seu concreto é impiedoso com a torrente da minha subjetividade, ele não absorve.
então minhas contradições ficam expostas e demoram a evaporar.
na falta do solo poroso do meu lugar de origem, que invasivamente me traga, as minhas águas se tornam violentas - me lavam, me diluem, me afogam.

IV
agora que boio nessa torrente seguro, nas mãos, o relicário. dentro dele está o ponto de apoio íntimo.
seguro-o firme. nem força da torrente, o cinza dos muros ou a frouxidão rotineira das minhas mãos me farão perder o relicário.
aí ele só poderá se perder se não tiver decantado o suficiente e ser ainda tão fino ao ponto de passar entre os dedos.


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[etnologia da solidão é uma série de fotografias do baiano marcelo reis.
a foto acima é dele, seu contato é www.casadaphotographia.art.br]

terça-feira, 16 de novembro de 2010

o grande sonho não está aqui dentro.
ele está lá fora, junto à rua [que é maior do que meu coração], lá fora junto aos homens [que andam, comem, trabalham e vivem, cada um a sua maneira, a contradição que é a vida].

nesse peito bobo, pequeno e frágil pulsa a veia do grande mundo.
nesse peito bobo morre a pequena vida.
nessa pequena vida explode o grande sonho.
[e eu, tão pequena, morro. e eu, tão pequena, cresço dez metros e explodo. tão pequena, boba e frágil sonho o grande sonho. e eu, tão frágil, boba e pequena, sei que só posso crescer - e cresço? - se construo o grande sonho.]

ó vida-futura, nós, que te criaremos, sentimos tantas dores, padecemos de múltiplos amores!
é dilacerante viver essa vida-presente, vida-presente tão preenchida de passado.
que faço eu com essa vida? essa vida que me arde e me bate a cada instante?

ó vida-futura corre, que eu já não fujo mais!
vida-futura, você que me surpreende a cada esquina, você que colore as estampas das saias, você que pinga a cada gole ..!
ó vida-futura me atropele imediatamente!

vida-futura não nos afastemos mais,
o tempo é minha matéria - o tempo presente, os homens presentes, a vida-presente.
vida-futura, estes ombros cansados anseiam pelos seus afagos!

eu, que sou uma contradição, digo, grito, xingo e morro:
ó vida-futura, nós te criaremos!

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este é o tempo em que não se diz mais 'meu deus'.
é o tempo da depuração e do desamor.
é o tempo da vida-apenas, sem mistificação.

e eu sei que o amor começa tarde.
enquanto ele não vem, eu corro.

ofegante, corro ainda mais. correndo vejo o entardecer.
a luminosidade laranja presencia o novo momento - queimando meus olhos míopes o entardecer anuncia um novo tempo:

ó vida-futura, nós te criaremos.

domingo, 31 de outubro de 2010

enfrentar o silêncio pode significar um passo importante rumo à construção da intimidade.
ou então pode ser [,também,] expressão inicial de estranhamento.

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intimidade é costurar com o outro um ambiente favorável para que aquilo que há de submerso venha à tona, e para o que há de desconhecido seja inaugurado.

a intimidade é, sobretudo, uma decisão consciente.
primeiro é preciso ir ao outro. depois, decidir trabalhar com ele, conjuntamente, na costura do ambiente favorável onde a intimidade possa se manifestar. por fim, é preciso ter coragem de permitir que o seu submerso venha à tona, que o seu desconhecido seja inaugurado, e que ambos sejam compartilhados com o outro.
tudo isso só é possível se for recíproco entre um e outro.
e a reciprocidade não é determinada pela forma que cada um encontra de expressar o desejo [e o prazer] pelo íntimo, mas sim pela direção que se dá à costura do íntimo.
a intimidade se faz a partir da conjugação simultânea de forças centrípetas.



o estranhamento é a incapacidade de nos reconhecermos naquilo que nós exteriorizamos, ou naquilo que os outros exteriorizaram.



a intimidade não é a antagonista do estranhamento, é a sua superação.


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não ouço nada agora que reflito sobre isso, só o latido do cachorro, que cessou antes mesmo que pudesse completar essas linhas.

domingo, 17 de outubro de 2010

o cigarro na mão esquerda representava o punhal, a cerveja na direita, o escudo.
foi então que entendeu: "você muda a sua vida, ou a sua vida vai te mudar".

dentre todos os sonhos grandes que tinha, há algum tempo, escolhera o grande sonho.

"ou você muda a sua vida, ou a sua vida vai te mudar" - sussurrou em voz alta como quem alertava a si mesma.
assim que fechou os olhos, decidiu: rasgou-se o peito com o próprio punhal. o vermelho que escorria dali chegou nos dedos.
enquanto o peito doia, as mãos se fortaleciam.
o grande sonho só se sonha de olhos bem abertos.
sua visão não poderia ser mais tão míope. era preciso, pois, corrigir a miopia da visão de fora e de dentro.
ela estava morrendo em todos os aspectos da vida.
tão morta e nunca antes tão viva.
[e tinha tanto ainda o que viver! ah, o grande sonho ...]

sorriu, era o seu compromisso de vida.
seu o coração aumentava de tamanho, cresceu dez metros e explodiu.
nos ombros muito peso. mas o que levava nas costas era a razão da maior das alegrias:
"ó vida futura!, nós te criaremos"

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www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/09/262416.shtml
www.memoriaviva.com.br/drummond/poema020.htm

quarta-feira, 6 de outubro de 2010



a tragédia pessoal de adelaide surgiu no momento em que aquilo que ela supunha ser essencial se mostrou contigente.

a tragédia pessoal de adelaide permanece.
a tragédia pessoal de adelaide consiste no fato de que as emoções que ela viveu nos últimos 365 dias são incontestávelmente contigentes.

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sartre e de beauvoir, parabéns pelo pacto.
eu preciso ser mais humana.
minha tarefa permanente é essa: a de humanizar a vida.

humanização da vida é revolução permanente.
revolução permanente é a mais profunda e irreversível humanização da vida.


a perspectiva da minha subjetividade é um devir-ser permanentista.
objetivamente permanentista.


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drummond, me ajuda a entender aquilo que sozinha eu não entendo.

vamos de mãos dadas.

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domingo, 3 de outubro de 2010

você não tem nome.
você é só um pronome de tratamento que uso para designar você-alguém-que-eu-não-conheço.

só posso reconher isso porque, finalmente, eu admito que perdi ou que nunca tive.

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quando não se pensa neles, eles não existem mais.
o corpo, mesmo ferido, sempre sobrevive.




[e ainda que correspondido a gente nunca é inteiro]
coisas de natureza diversa lotavam a cabeça,
revezando entre elas, em um vai-e-vem desvairado, a atenção prioritária por três ou quatro segundos.

em seis minutos conseguia pensar no mundo que imperativamente exigia que ela aumentasse de tamanho.
e ela estava aumentando.

sem saber como falar, tinha muito pra dizer.

era assim mesmo incompleta e permanentemente muito menor do que gostaria.

ela precisa aumentar muito o seu tamanho.
acho que ela está aumentando de tamanho.

ela é tão pequena e quer ser tão grande.

ela é tão cheia e tão vazia.
ela está se esvaziando de tudo que sente, para depois se encher de muitas outras coisas.

ela está se esvaziando de tudo e se sentindo tão mais leve.

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e pra definir precisamente: estava magra, leve e calma.

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[aumentar de tamanho doi. aumentar de tamanho é se ver no outro. aumentar de tamanho é se dar, em partes, para o outro. aumentar de tamanho é dividir com o outro. aumentar de tamanho é ouvir o outro. aumentar de tamanho é conhecer o outro à medida em que se conhece a si mesmo. aumentar de tamanho é caminhar com o outro e caminhar sozinho. aumentar de tamanho é tarefa solitária, que pode ser dividida em alguns momentos com muitos outros.
aumentar de tamanho é não querer estar sempre no mesmo lugar. aumentar de tamanho é ser compreensivo consigo, com o outro e com o mundo todo vivo.]

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

foi voltando para casa, à pé, que se deu conta:
a dor na coluna, o nó no estômago e o cansaço nos olhos não eram tristeza.
era só o tropismo do Eu - egotropismo.

é que a gente nunca é grande o suficiente, e o mundo é sempre muito maior.
aumentar de tamanho doi.

sábado, 21 de agosto de 2010

eu vou deixar sair.
eu vou deixar sair de mim, eu vou deixar sair em mim.

eu vou deixar sair.
eu já deixei sair. pode sair.

sai.

saiu.
saiu e saiu com a minha permissão.

eu deixei sair.
saiu, não está mais comigo, não é meu.
não faz parte de mim. não está aqui.

saiu. eu deixei.
saiu, foi embora.




eu deixei sair.
finalmente eu pude fazer isso.

saiu, foi embora.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010



"existe um ser que mora dentro de mim como se fosse a casa dele, e é. trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem - pois nunca morou antes em ninguém nem jamais lhe puseram rédeas nem sela - apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura primeira de quem não tem medo: come às vezes na minha mão. seu focinho é úmido e fresco. eu beijo o seu focinho. quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito. a menos que ele escolha outra casa e que esta outra casa não tenha medo daquilo que é ao mesmo tempo selvagem e suave. aviso que ele não tem nome: basta chamá-lo e se acerta com seu nome. ou não se acerta, mas, uma vez chamando com doçura e autoridade, ele vai. se ele fareja e sente que um corpo-casca é livre, ele trota sem ruídos e vai. aviso também que não deve temer o seu relinchar: a gente se engana e pensa que é a gente mesma que está relinchando de prazer ou de cólera, a gente se assusta com o excesso de doçura do que é isto pela primeira vez."

[clarice . uma aprendizagem ou o livro dos prazeres]


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lendo clarice descobri que até ela já tinha teorizado sobre adelaide.

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clarice sobre adelaide: adelaide pra mim é um cavalo preto e lustroso.

.:.

clarice sobre adelaide:
adelaide pra mim é um corpo-casca vazio e doce.

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adelaide sobre o livro de clarice: eu vou superar as últimas dez páginas, clarice. estive pensando e acho que sou a lóri.

.:.

clarice é a melhor amiga de adelaide.

domingo, 1 de agosto de 2010

foi então que ela se lembrou que, meses atrás, já tinha encontrado uma resposta pra isso:


"não sofria mais de febre terçã.
aprendera a digerir paquidermes, a dissolver venenos e envolvimentos até a milésima parte.

depois de tanto peso, se sentia leve.
depois de tanto tempo, se sentia breve.

aprendera a ver cores no cenário preto e branco.
aprendera ouvir música no silêncio da casa vazia.

.:.
ela estava sendo assim como queria ser,
magra, leve e calma.

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criava borboletas do estômago.
as asas que viviam dentro, nas entranhas, ganharam vida externa, foram parar na coluna.
foi então que ela bateu asas e voou."

[19.fevereiro.2010]

.:.

"ela se reconhecia em si mesma e isso era incrível.
a sensação que daí derivava era de alívio.

não sofria mais de febre terçã, aprendera a digerir os seus paquidermes, os seus e os dos outros.
aprendera a entender suas próprias contradições, a olhar para elas de maneira compreensiva.
e entendera que, a despeito dessas contradições, é preciso ter uma postura resoluta com a subjetividade alheia, e com a sua própria subjetividade sobretudo.
a despeito das contradições, dos paquidermes, das vontades mais firmes, dos medos mais paralisadores e das motivações mais sinceras é preciso partir, andar.

se olhava no espelho e se permitia perder-se.
perder-se nos meandros de si, naquilo que possuia de mais íntimo e particular.
a sensação de quase-plenitude que sentia ao se descobrir era azul.
estava feliz. e pela primeira vez em tempos o gosto do ferro que lhe feriu o peito abandora a boca.

o gosto agora era doce.
doce gosto de estar sozinha, diante de si, tão disposta a entender o universo e preenchê-lo de siginificado.

lembrava do cheiro de manjericão, sorriu e bebeu um copo d´água.


.:. "

[25.fevereiro.2010]

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as subjetividades não se constroem de maneira evolutiva, elas avançam aos saltos, numa sobreposição de sensações, impressões e significados.
a minha subjetividade é uma colcha de retalhos.
a minha subjetividade é a colcha de retalhos que minha avó fez pra mim quando eu era criança, só fica confortável depois de surrada pelo tempo.
é o tempo quem sempre dá a melhor forma pra minha subjetividade-colcha-de-retalhos.

.:.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

e foi tão intenso que, no dia seguinte, a impressão que ela tinha era de estar com febre.


.:.

domingo, 25 de julho de 2010

quien no lo sepa ya lo aprenderá de prisa:
la vida no para, no espera, no avisa.
tantos planes, tantos planes vueltos espuma
tu, por ejemplo, tan a tiempo
y tan inoportuna

eran más bien los días de arriar las velas
toda señal a mi alrededor decía: cautela.
cuánta estrategia incumplida, aquella noche sin luna
tu, por ejemplo, tan bienvenida
y tan inoportuna

¿quien sabe cuándo, cuándo es el momento de decir: ahora?
si todo alrededor te está gritando:
¡sin demora, sin demora!

.:.

adelaide se sentía tan a tiempo y tan inoportuna.

sexta-feira, 23 de julho de 2010



adelaide precisava se esvaziar de tudo o que sentia para depois se encher de alguma outra coisa.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

adelaide: minha amiga jung chang disse que é importante manter a mente aberta - tão simples, e ainda assim eu demorei tanto pra descobrir.

paula: eu acho você tão bonita, adelaide. você é como uma lagarta listada. você é engraçada! você parece louca.


as duas riram e juntas foram dormir.


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adelaide pensou logo que fechou o livro:
"vou sentir saudades de você, amiga jung chang."


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terça-feira, 20 de julho de 2010

pela décima vez, ainda adormecida, acionou a função 'soneca' e pensou:
"só mais cinco minutinhos ...".

na décima primeira vez que o despertador tocou, resolveu que era hora de levantar.
abriu os olhos ainda deitada e os sentiu incrivelmente pesados e arranhando.
ao contrário do que lhe aconselhava seu falho bom senso, os coçou com muita força, enquanto procurava os chinelos com os pés.

pensou que a miopia dos olhos de dentro acidentalmente teria agravado a miopia dos olhos de fora.
precisava escovar os dentes, lavar o rosto e tomar um chá quente e forte para também despertar a cabeça.
ainda não tinha conseguido abrir totalmente os olhos, que além de pesados e arranhando, pareciam esturricados de tão secos - suas retinas deveriam estar fadigadas pela visão desse mundo todo vivo.

invertendo a ordem cotidiana, passou tateando pela porta do banheiro e foi direto para a cozinha.
ali a claridade era ainda maior e por isso permaneceu com os olhos semi-cerrados. colocou a água no fogo e foi para o banheiro, seguindo seu ritual diário.
diante do espelho decidiu se esforçar para os abrir.
'abra los ojos', disse mentalmente, lembrando de um filme que adora.
ao fazê-lo, os sentiu ardendo e os cílios grudando.

se aproximou do espelho, abriu os olhos o máximo que pôde.
eles estavam inchados e bastante vermelhos:

"ah! ... é só conjuntivite!!"

.:.

sábado, 17 de julho de 2010

cotovelos apoiados na mesa, as mãos sustentavam a testa e os dedos se perdiam na franja de seus cabelos claros, curtos e meio oleosos.
suspirou um suspiro sonoro, levantou-se bastante assustada.
deveria arrumar tudo aquilo muito rapidamente.
não poderia deixar fazer efeito.
displicentemente abrira uma de suas caixas de pandora, de onde saíra alguma substância perigosa que a deixava graciosamente boba. e essa substância, que tinha também a propriedade de desarrumar absolutamente tudo, agiu feito vento teimoso que quando a gente deixa a janela aberta joga tudo pro ar.
sabia que tinha pouco tempo. conscientemente deveria colocar as coisas no lugar imediatamente, tirando da vista tudo aquilo que lhe fizesse lembrar de seu estado graciosamente bobo de minutos atrás.
de maneira apressada reorganizou tudo e respirou aliviada.
se despiu também às pressas e, como quem fugia, correu para o banheiro. nem se deu conta de quando abriu o chuveiro e a água quentíssima começou a cair na nuca nua e nos ombros.
era o jeito mais fácil de chorar, não conseguia identificar o que era água e o que era lágrima.
assim, nunca sabia quanto estava chorando de fato e era como se não estivesse. aí tudo ficava mais calmo e chorar parecia mais natural.
saiu do banho, se trocou e secando os cabelos com a toalha revisou mentalmente o que tinha para fazer: "responder emails, estudar, dar um gás no trabalho ... ah! tem o filme da mostra de cinema latino-americano mais tarde ...".
entrou no quarto e se surpreendeu com a ordem que imperava ali:
"estranho, parecia tudo tão bagunçado quando eu saí ...".
engoliu seco quando viu a caixa que ainda estava em cima da mesa, reviveu toda a epifania de instantes atrás em questão de segundos.
entendeu que seu método clássico de lidar com o que não cabia em si não funcionaria mais.
resolveu que não guardaria a caixa, tirou tudo o que estava na cômoda do lado direito e a deixou ali, à vista.
respirou tranqüila, apesar dos olhos marejados e do nó na garganta.
"eu vou aprender a lidar com você, sra. caixa".
aí todo mundo entendeu - ela, o quarto, a caixa, a lágrima, a cômoda - que realmente iria aprender.
é que por amor a gente faz muita coisa, inclusive aprende lidar com caixas.
não era amor à caixa, era amor à substância perigosa que lhe deixava num estado graciosamente bobo.
"cedo ou tarde essa substância haverá de retomar sua forma de gente", pensou resignada.
caminhou até a cozinha e ferveu um pouco d´água para tomar um chá.

adelaide: vai, minha tristeza, e diz-lhe que sem, assim, não pode ser. diz-lhe numa prece que regresse. diz-lhe que chega, que não há paz, não há beleza. diz-lhe que tudo aqui precisa ser mais lindo, precisa ser mais louco. diz-lhe que os abraços - apertados, colados e calados -, os beijinhos e os carinhos hão de ser milhões e sem ter fim. diz-lhe que é pra acabar com esse negócio, que é pra parar, pra deixar esse negócio, que eu não quero mais esse negócio.

tristeza: eu digo sim, adelaide, eu digo sim.

sexta-feira, 16 de julho de 2010



nessa época, eu agarrava a oportunidade de solidão, e demonstrava ostensivamente que nada queria com o mundo à minha volta, o que deve ter-me feito parecer meio arrogante.


jung chang .:. cisnes selvagens


.:.

mentalmente disse:
"obrigada, amiga jung chang, por expressar tão perfeitamente o que estou sentindo agora e não sou capaz de dizer."


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quinta-feira, 15 de julho de 2010




finalmente reconheceu:
"ok. eu sou estranha e meio insegura."

[meio insegura ?!?!?]


"sim, estranha e meio insegura."


.:.

recolheu todas as plumas, paetês, cheirinhos, coisinhas, perfuminhos, fru-frusinhos e guardou.

decidiu:
"chega de rei, poeta, príncipe, peter pan, cavaleiro, artista e literato!"
se despediu de todos.

suspirou e anunciou apaixonada seu novo amor:
"eu te amo, sapo caco!"


.


"quer um beijinho com batom de moranguinho, sapo caco?"

[ei! mas você é mesmo estranha ...]

"eu não sou estranha. sou estranha e meio insegura"


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agora era assim: ela amava o sapo caco.

terça-feira, 13 de julho de 2010






olhava pra si e pra fora, cinza.
de dentro do guarda-roupa saltavam estampas e texturas.
mas hoje não se dava com elas, estava cinza.

pensou nos dias quentes desse inverno meio estranho.
mas hoje a chuva teimava em cair, um dia feio, estava cinza.


pensou que queria cores.
cores fortes, sóbrias e cortantes: margenta, azul petróleo, verde bandeira.
lilás, rosa bebê e azul piscina poderiam lhe causar náusea, diarréia.


sabia o que queria enxergar.
não se enganava com o colorido fácil, acessível, digerido e bobo.
precisava de outro.
foi então que pediu: 'dai-me outra cor?'


.:.
deitava-me num monte de canas, meu chapéu de palha sombreando parte do rosto. através do chapéu, via o vasto céu turquesa. uma folha destacava-se do monte de canas acima, parecendo desproporcionalmente enorme contra o céu. entrecerrava os olhos, sentindo-me aliviada pelo frescor da vegetação.

a folha lembrava-me as folhas oscilantes de uma touceira de bambu, numa tarde de verão quente semelhante, muitos anos antes. sentado à sua sombra, a pescar, meu pai escrevera um poema triste. no mesmo gelu - padrão de cores, rimas e tipos de palavras - do dele, comecei a compor um meu. o universo parecia parado, além do leve roçagar da brisa refrescante. a vida me parecia bela naquele instante.

nessa época, eu agarrava a oportunidade de solidão, e demonstrava ostensivamente que nada queria com o mundo à minha volta, o que deve ter-me feito parecer meio arrogante.


jung chang .:. cisnes selvagens

terça-feira, 6 de julho de 2010

o raciocínio era simples:
a proximidade dela era inversamente proporcional a proximidade dele.
se ela estivesse perto, ele estaria longe.

a distância dele deixava tudo mais calmo.
mas deixava também uma sensação leve e constante de falta.
tudo ficava um pouco triste.

se ela estava perto, ele voltaria a ficar longe?
sentiu um aperto no peito de pensar nisso.

de repente sentiu muito medo.
e começou a se torturar com todas as possibilidades de proximidade entre eles.

medrosa, covarde e insegura.
e sofrendo da síndrome da constante insatisfação.


.:.

perto ou longe?

preferia perto, bem perto.

já se tornara rotina: sentimentos incompletos, cigarros, meia dúzia de cervejas - e as coisas voltavam a se apresentar com algum sentido.

sentia muita coisa, a cabeça estava repleta de perguntas.
sabia, queria estar longe de problemas.
calma e lacônica sempre ouvia o mesmo cd: "riot on an empty street".
e daí extraíra o mais sábio [bom] conselho: stay out of trouble.

talvez fosse idealismo demais .. mas, assim, subjetivamente, não queria mais colocar as mãos em vespeiros. estava cansada e calejada.
longe de problemas, de contradições, dificuldades ... era o que queria.
mas o estar com o outro não era assim.
ao contrário, seria sempre, sempre, marcado pelos problemas, pelas contradições e pelas dificuldades.

dilema difícil de resolver.

teria, então, que escolher.
há tempos sabia, e não sabia, o que queria.

'ponho ou não ponho as mãos no vespeiro?' - se perguntava.

as picadas das vespas doeriam - ela sabia.
mas não experimentá-las [já] doia ainda mais.

pagaria pra ver?

sabia que o encontro é assim, feito gelo em copo comprido.
aparece meio de repente e te faz engasgar.

a garganta se fechava em nós, queimando.

tentaria o último - e já tãããããããão enunciado - gole?
[não convencia nem a si mesma disso.]


não.

não.




'stay out of trouble .... stay in touch ...'

.:.



decidiu e respondeu:

'então você percebeu? era pra você.'


.:.

antes de pegar no sono, leu:
'sua mensagem foi entregue'.



.:.


será?

.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

1h31, com o ventre no encosto frio da janela, disse em voz alta:
"ele não gosta de mim".


o mais engraçado era que levou quase nove meses para perceber.


e, fumando o último cigarro, cantou o verso:
"socorro!, eu já não estou sentindo nada!"

.:.

já não queria mais escrever sobre o tema.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

cansaço e frio era o que mais sentia nas últimas semanas.
sensações que eram interrompidas quando esbarrava nas novidades e na felicidade que sentia ao colher os frutos da politização da vida.

às vezes se sentia sozinha e em alguns momentos se incomodava com o ritmo acelerado desses novos tempos. estava se adaptando bem, mas não ainda não se reconhecia completamente no universo ao seu redor.
nos momentos de estranhamento se voltava para o infinito particular.
apertava as vísceras, mergulhava nos meandros de si - recobrava suas forças.

nos momentos de cansaço e frio é preciso ser forte.
na dedicação à politização da vida é preciso ser firme.
diante do ritmo alucinante é preciso ter calma.
e pras recentes novidades iria mostrar sua doçura e tranqüilidade.


.:.

suspirando, pensava:
'se fosse fácil não seria tão bom assim'.

magra, leve e calma desejava o novo.

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segunda-feira, 24 de maio de 2010




nós dois no quarto: meu cachorro e eu. lá fora, a tempestade uiva, desenfreada, assustadora.
o cachorro está sentado à minha frente - e me olha direto nos olhos.
eu também olho para os olhos dele.
parece que quer me dizer alguma coisa. é mudo, sem fala, nem entende a si mesmo - mas eu o entendo.
entendo que neste instante, nele e em mim, vive o mesmo sentimento e entre nós não existe a menor diferença. somos idênticos; em cada um, arde e brilha a mesma chama, pequena e trêmula.
a morte virá voando, vai abanar sobre essa chama suas asas frias e largas ...
e fim!
depois, quem poderá distinguir que chama ardeu em cada um de nós?
não! não são um animal e um homem que se olham ...
são dois pares de olhos idênticos, concentrados um no outro.
e em cada par de olhos, no animal e no homem, a mesma vida assustada tenta se agarrar no outro.

. o cachorro . ivan turguêniev .


.:.


sobre a amelie eu falo em primeira pessoa:
quantas saudades eu sinto de vc, alma-minha!

nesse mundo-cão que falta faz suas lambidas, os latidos e o olhar pidão ...

quinta-feira, 20 de maio de 2010

ah, novidade!

de um lado sou carnaval, de outro fome-total
qualidade rara, deusa maia, fartura de baleia.




eu quero é novidade, dessas muito novas,
dessas inéditas!




.:. a novidade .:. gil .:.

sábado, 1 de maio de 2010

era assim: meio oiticica e um pouco caetano.
tropicália e artes (às vezes marciais e, nas outras, um tanto banais).

se pudesse condensar numa formulação a síntese do que sentia seria assim:
inadequação e não-pertencimento em relação àquilo que lhe rodeava.
se reconhecia só naquilo que era.


.:.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

novidade, bermuda larga
pijama confortável, causa justa.

terça-feira, 20 de abril de 2010

se sentia profundamente exposta. não entendia exatamente porquê, mas era difícil ter a postura resoluta que reivindicava.

doía.

sua impressão era de estar envolvida por cordas de mil metros. quanto mais tentava se desvencilhar, mais envolta ficava.
aquilo era um pântano. sentia-se sem ar.

decepcionada, fechou os olhos. desejou estar em outro lugar, distante dali.
pensou que a solução poderia chegar como a maré, de acordo com o movimento da lua.

nos joelhos percebeu a água subindo. repentinamente as cordas se soltaram.
era prova do cansaço, não de força.

abriu os olhos e voou pra longe.
depois disso o alívio viria, com a rapidez de um antídoto intravenal.


.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

ainda de pijamas, fumava encostada na janela.
sentia uma dor aguda, como se algo cortante lhe penetrasse o cóccix, perfurando o caminho da coluna e saísse rente à nuca. era o tropismo do ego, egotropismo.

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ah, se é pra cortar que corte.
que eu deixo o Eu crescer. deixo a dor doer em mim.

imediatamente começo assobiar, ao som de alguma música que me deixe mais leve.


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quarta-feira, 14 de abril de 2010

chegou em casa cansada e com o tornozelo esquerdo doendo um pouco.
pendurou as chaves, indisciplinadamente deixou a mochila no chão.
no escuro, abriu a geladeira. pegou a última cerveja, continuaria o ritual.
tomou um gole e desejou o maço de cigarro que não comprou no caminho de casa. a cerveja desceria à seco, paciência.

a cabeça derramava idéias resignadas.
sentia as maiores saudades dos amigos que estavam longe. como amava todos eles! como os queria por perto!..

nesse preciso momento se sentia só.

sobre as voltas e os tropeços dos últimos tempos finalmente entendera e, agora, entendera até o final:
seria assim, precisamente assim, como todos esses limites.

o óbvio, o imediatamente deduzível, lhe pareceu a maior das novidades.
e como doeu se dar conta disso. seria sempre assim, precisamente assim.
mas no fundo ela sabia. só não admitia por ele[s], não por ela mesma - era mais fácil.

os últimos goles seriam úmidos, nas mãos e nos olhos.
a umidez escorria no rosto, estava chorando.
seria a derradeira despedida? ou admitir era realmente dolorido?
(nesse caso, mais dolorido que o tornozelo esquerdo.)

isso ela não saberia dizer.
mas o óbvio teimava em lhe saltar aos olhos: era mesmo limitado.
e ela, à revelia, precisava definir um lugar pra desejar. sentia saudades de casa, não sabia mais o que chamar de lar.

queria estar longe de confusão.
sabia que isso significaria estar longe também do cachecol vermelho que lhe aquecera os olhos.
fechou com força esses mesmos olhos castanhos e sentiu que talvez fosse mesmo uma despedida. e como isso doia!..
talvez fosse melhor assumir: 'o que nos cabe é a saudade!' (como doia!).
caminharia em frente pra sentir saudade.

respirou fundo e cantou em voz alta, desejando tanto que [ele] pudesse ouvir:
'i can forget about myself trying to be everybody else
i feel allright that we can go away
and please my day
i let you stay with me if you surrender'

agora sim iria dormir.
e essa noite, sabia, não sonharia mais.


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[i'll take a ride in melodies and bees and birds ...
will hear my words?]

terça-feira, 13 de abril de 2010

depois de horas lutando contra o despertador, acordou.
sentou-se na cama, desceu os pés ao chão. sentia o corpo renovado, mas a cabeça não descansou.

abriu a porta pensando no café que coaria logo depois de escovar os dentes.
foi então que se deu conta: sonhara a noite inteira.
com a escova nas mãos e a boca cheia de espuma voltou pro quarto, respirou fundo.
o sonho deixou ali um cheiro forte e já conhecido.

lembraria disso o dia inteiro.

domingo, 11 de abril de 2010

digam por mim!
ainda há muito o que dizer:


i lose some sales
and my boss won't be happy
but i can't stop listening to the sound
of two soft voices blended in perfection
from the reels of this record that i found

every day there's a boy in the mirror
asking me
what are you doing here
finding more that previous motifs
growing increasingly unclear

i travelled far and i burned all the bridges
i belived as sooned as i hit land
all the other
options held before me
wither in the light of my plan

so i lose some sales
and my boss won't be happy
but there's only one thing on my mind
searching boxes underneath the counter
on a chance that on a tape i'd find

a song for
someone who needs somewhere
to long for

homesick
cause i no longer know
where home is


. homesick . kings of convenience .
estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
e não tivesse mais irmandade com as coisas
senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
a fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
de dentro da minha cabeça,
e uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
estou hoje dividido entre a lealdade que devo
à Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
e à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

.

sempre uma coisa defronte da outra,
sempre uma coisa tão inútil como a outra,
sempre o impossível tão estúpido como o real,
sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

.

a realidade plausível cai de repente em cima de mim.

.

tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
meu coração é um balde despejado.

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à parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

.:.

quando não sei como dizer,
deixo que os outros falem por mim.
e pra derramar o que não cabe passeio pela 'tabacaria' de álvaro de campos.


às vezes não sei como dizer,
então deixo que os outros falem por mim.


.:.


meu coração é um almirante louco
que abandonou a profissão do mar
e que a vai relembrando pouco a pouco
em casa a passear, a passear...

no movimento (eu mesmo me desloco
nesta cadeira, só de o imaginar)
o mar abandonado fica em foco
nos músculos cansados de parar.

há saudades nas pernas e nos braços.
há saudades no cérebro por fora.
há grandes raivas feitas de cansaços.

mas — esta é boa! — era do coração
que eu falava... e onde diabo estou eu agora
com almirante em vez de sensação? ...




[ah, um soneto . álvaro de campos]


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que alívio.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

a garganta pesava toneladas - arranhada pela gripe, que teimava em não se realizar de vez, e por todos os versos não ditos.
as mãos, molhadas pela garoa, cheiravam a tabaco.


fora nocauteada.
os próximos dias seriam de resolução:
diria tudo, numa forma epistolar.


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terça-feira, 6 de abril de 2010

calças de pijama, moleton e meias brancas.
o calor da caneca esquentava a mão direita - estava de pé, encostada na porta do quarto.
observava o lugar, agora tudo estava em ordem.
arrumar a cama foi o que lhe exigiu mais resolução e persistência. num dia frio como esse, com a coriza tão insistente e a garganta arranhando, sua vontade mais sincera era voltar pros cobertores tão preguiçosos quanto ela.

pensou que arrumar a desordem de si levaria mais tempo, era tarefa contínua.
sempre é preciso construir um sentido pro que se passa dentro. nisso ela tinha prática, suas mãos eram habilidosas.
se viu como artesã, começou o trabalho.

por instantes se preocupou: e se esse processo de organização e feitura lhe emocionassem?
respirou aliviada e se lembrou da música:

'tears dry on their own'.



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domingo, 4 de abril de 2010

hoje iria dormir engasgada.
antes de escrever a respeito precisaria organizar essa torrente de idéias pontiagudas e cortantes.
ela sabia (e sobre isso tinha uma postura resignada):

as palavras precisam de tempo.


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os olhos pesavam, mais de preguiça do que propriamente de cansaço.
de todo modo, os últimos dias tinham sido cheios.
a casa estava quieta e ela queria dormir.

havia muito o que organizar.
as roupas recém lavadas estavam todas em cima da mesa, cheirosas e amarrotadas.
os jornais da semana no chão, logo ao lado da cadeira. a cama não era esticada há alguns dias.

e por dentro a mesma coisa.
'preciso colocar em ordem' - disse como quem se aconselhava.

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sábado, 27 de março de 2010



o estômago se contorcia, dando nós. estava com fome e precisava comer.
por algum motivo sabia que não poderia se saciar com alguma coisa simples.

resolveu caminhar um pouco mais e apostar na paciência que, em geral, não tinha.
minutos depois encontrou o que queria: um lugar que servisse aromas e especiarias.
naquele cardápio diversificado, refinado e um tanto confuso (ali constavam ingredientes desconhecidos para sua limitada cultura gastronômica, com nomes em língua estrageira que ela não entendia), escolheu:
'por favor, um prato de flores.'

a cozinha de lugares como aquele costumam ter um ritmo próprio, sua fome aumentava.
depois de algum tempo, que lhe soou quase como meses, chegou o prato.
ela observou e achou graça, as flores também riam.

comeu, comeu e comeu.
sobrou um pouco. ela guardou no bolso cada uma das flores que ainda estavam ali.
pagou a conta e saiu. deixou-se levar pruma maloca qualquer na beira do rio.

se sentou na parte vazia do deque.
acendeu um cigarro e tirou as flores do bolso. o cuidado com que as guardou impediu que suas pétalas amassassem.
ela costumava ser cuidadosa.
olhou pras flores, pensou em fazer um jardim.
percebeu que algumas delas tinham espinhos - essas ela guardaria pros que pensarem em enganar a flor.


voltou pra casa, que dia vagaroso ...



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quinta-feira, 25 de março de 2010




o que for pra ser vigora,
assim, feito mato que teima em nascer verde num campo aberto e seco.


deixa estar ..





.:encontro.:.maria.gadú:.

quarta-feira, 24 de março de 2010

sua capacidade de cicatrização era realmente incrível, bastou uma noite de sono.
mas ela só não poderia fingir que já não doia mais.

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terça-feira, 23 de março de 2010

minha querida,

você precisa aprender a dizer 'não'.






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segunda-feira, 22 de março de 2010

é pras miúdezas da vida que eu tenho pouca paciência.
me dou melhor com os fatos de muita relevância.


[mundo mundo
vasto mundo,
não me chamo raimundo

não me venha mais com rimas,
eu quero uma solução!!]

sábado, 20 de março de 2010




doce e atroz, mansa e feroz:
mais um pedaço de mim morre. mergulho de novo e não te convido.


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[é preciso educar os ouvidos para ouvir o outro.
e ouvir o outro não é coisa simples, é tarefa de grande monta.

porque o outro fala outra língua que, a princípio, eu nunca entendo.

eu escuto muita coisa. do que eu escuto, alguma parte ouço.
do que ouço, só uma pequena parte sou capaz de entender, não sem algum esforço.



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fale em qualquer língua, estrangeiro! que eu reconstruo seu discurso e arranco seu significado..
só não me venha com uma conversa-fiada, falada em javanês!

olho pra dentro e grito: "ora (direis), ouvir estrelas ..."!
e quanto você? eu já não te ouço mais.]




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quinta-feira, 18 de março de 2010

se sentia tão cansada, só precisava dormir.
sorriu e os olhos brilharam, chegaram quase a estalar: foi só um dia cheio.

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terça-feira, 9 de março de 2010

entrou em casa levemente bêbada.
deixou as chaves na estante que estava à direita da porta. foi direto pro banheiro, deixou a bolsa no chão, mijou.

abriu a porta do quarto, tirou os tênis um pouco encardidos, jogou-os indisciplinadamente em algum canto. fuçou no armário e pegou a camisola mais confortável que tinha. logo depois o cobertor.

começou a dispir-se. tirou o jeans surrado, depois a blusa com alguma estampa divertida.
olhou para o seu próprio corpo. pensou que por detrás do piercing, das curvas e da pelugem estavam suas entranhas - algo muito mais íntimo do que a cintura nua. sentiu-se aliviada por não ser capaz de as expor para ninguém.

tirou o top, parou por aí. estar completamente nua era uma sensação estranha.
pensou que nunca esteve completamente nua. queria despir-se de sua própria pele.
de repente sentiu que não conhecia a si mesma. a maior parte do seu corpo, tudo aquilo de íntimo e particular, estava nas entranhas. lugar inacessível para ela mesma.

ela precisava se livrar da epiderme. queria apertar os rins, o intestino, o pâncreas e o fígado entre os dedos, com toda força que tinha.
olhou para os braços, achou graça dos pêlos meio loiros.
olhou para a cintura mal vestida, um pouco de sensualidade residia ali.

voltou a pensar nas entranhas.
pensou nas palavras trocadas, nas palavras não-ditas, na distância que sempre se impunha,
nas expectativas não-logradas, nos gestos mal-pensados, no carinho leviano. a certeza de que estava sozinha, que por muitas vezes se apresentou como alívio, dessa vez apareceu como um nó na garganta.
riu de si mesma e se lembrou de que despir-se daquilo que era não podia ser indolor.
reinventar-se doia. o crescimento do Eu era como uma lança, que lhe cortava a coluna.
abriu o zíper. deixou a pele no chão, como fez com o jeans há minutos atrás.
se surpreendeu quando viu que por baixo da derme não encontrou as entranhas.
olhou para o corpo semi-nu. abriu e fechou os olhos.
fazer-se era tarefa para o tempo todo, para todo o tempo. fazer-se era revolução permanente.
e revolução permanente era politização da vida.

entendeu que o ferro que lhe feria o peito poderia ser um instrumento para se descobrir.
rasgou o tórax, despiu-se de novo.
agora sim estava nua.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

ela se reconhecia em si mesma e isso era incrível.
a sensação que daí derivava era de alívio.

não sofria mais de febre terçã, aprendera a digerir os seus paquidermes, os seus e os dos outros.
aprendera a entender suas próprias contradições, a olhar para elas de maneira compreensiva.
e entendera que, a despeito dessas contradições, é preciso ter uma postura resoluta com a subjetividade alheia, e com a sua própria subjetividade sobretudo.
a despeito das contradições, dos paquidermes, das vontades mais firmes, dos medos mais paralizadores e das motivações mais sinceras é preciso partir, andar.

se olhava no espelho e se permitia perder-se.
perder-se nos meandros de si, naquilo que possuia de mais íntimo e particular.
a sensação de quase-plenitude que sentia ao se descobrir era azul.
estava feliz. e pela primeira vez em tempos o gosto do ferro que lhe feriu o peito abandora a boca.

o gosto agora era doce.
doce gosto de estar sozinha, diante de si, tão disposta a entender o universo e preenchê-lo de siginificado.

lembrava do cheiro de manjericão, sorriu e bebeu um copo d´água.


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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010



não sofria mais de febre terçã.
aprendera a digerir paquidermes, a dissolver venenos e envolvimentos até a milésima parte.

depois de tanto peso, se sentia leve.
depois de tanto tempo, se sentia breve.

aprendera a ver cores no cenário preto e branco.
aprendera ouvir música no silêncio da casa vazia.

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ela estava sendo assim como queria ser,
magra, leve e calma.

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criava borboletas do estômago.
as asas que viviam dentro, nas entranhas, ganharam vida externa, foram parar na coluna.
foi então que ela bateu asas e voou.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

"sempre uma coisa defronte da outra,
sempre uma coisa tão inútil como a outra,
sempre o impossível tão estúpido como o real,
sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra."


. tabacaria .:. fernando pessoa .


os cigarros ajudavam na libertação do pensamento,
que se desenrolavam como um novelo.

minha história continua, sou sublime.
e quanto a tudo isso, seja o que for! se puder inspirar, que inspire!
que meu coração é como um cão perdido na mudança.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010




sentia-se descalça e sem pele diante de uma platéia muda e indiferente.
espremeu as entranhas, tirou dali a resolução: de óculos escuros falou de amor à vida.


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cuidado, é só de carne.
não tem cimento dentro do meu coração.



[que fragilidade!]



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segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010



entre a ânsia
e a distância
onde me ocultar?

entre o medo
e o multiapego
onde me atirar?

entre a querência
e a clarausência
onde me morrer?

entre a razão
e tal paixão
onde me cumprir?


.: onde . zila mamede :.



.:.

é preciso encontrar a justa da medida das coisas.


[e eu continuo a escrever a minha história,
só pra provar que sou sublime.]





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quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

estar ali significava libertação. libertar-se de si, sobretudo. libertar-se da sua teimosia. a inutilidade de persistir era verificada a cada dia. e ela se dava conta disso a cada instante recortado e preto-e-branco.
o veludo vermelho a fazia lembrar de como as coisas se passavam intensamente por dentro. ela se sentiu viva e lembrou que a sua presença costumava ser estardalhante. o alívio veio, na veia de quem deixou o cansaço e a velhice do Eu de lado.
ela sorriu. e quase que instintivamente sentiu-se dona de si e do seu caminho. era bom estar ali. por um momento saiu do Eu e se incomodou com a demora. a demora sempre a incomodava, mesmo quando se tratava de assuntos de si mesma, de si própria, do Eu e do universo com novo significado. olhou para o lado: um casal de meia idade. as marcas no rosto da mulher lhe deram a impressão de que há muito tempo eles se afastaram dos sonhos iniciais, e não permitiram que outros sonhos chegassem. eles se escondiam um do outro. a relação que mantinham parecia algemá-los. um no outro e os dois na rotina.
de volta ao Eu e, portanto, fora de si, ela retomou o processo de libertação. pensou que isso fosse transcender. ela conseguiu nomear o que buscava e se sentiu menos presa por isso. ela queria brilhar ao lado de mais quatro estrelas. seriam, então, cinco. cinco estrelas brilhando. esse brilho representou o desejo imenso de sentir algo intenso. sentiu. ansiava por sentir-se livre. e se questionou quanto a intensidade o ser. entendeu que intenso mesmo era sentir e que a liberdade viria depois, quem sabe. suspirou. sentiu de forma intensa e foi livre, por não mais que três segundos.
forte, foi assim que ela se definiu. tão forte quanto um bruce lee, desses do maranhão. a sensação de ser livre era mais incômoda. ela escolheu a liberdade ao invés da força. e foi livre outra vez. se imaginou numa estrada. decidiu se danar naquela estrada, mundo a fora e ir embora. mas ela não saiu do lugar. era a estrada do Eu, os meandros de si.
entendeu que ser livre era processo. e estar ali era o veredicto para que o fosse. o Eu disse a ela que ambos eram sozinhos. o que era bom. era bom porque era recíproco. o Eu era sozinho dentro si e dentro dela. e ela não fazia companhia a si mesma. foi livre outra vez.
nomeou outra coisa que queria. ela ansiava por uma companhia. alguém para dividir músicas, nóias, amigos e mapas de tesouros encantados. olhou para o lado de novo. não queria acabar como aquele casal, algemado e rotineiro. percebeu que o queria mesmo era momentos de encontro e decidiu pensar sobre isso mais tarde.
as luzes se apagaram e ela se esqueceu de si e do Eu. se esqueceu também do que queria. se esqueceu da liberdade. começou o filme: “lisbela”. o prisioneiro ficou do lado de fora.



http://los-hermanos.letras.terra.com.br/letras/71186/


texto de 12.02.05


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terça-feira, 19 de janeiro de 2010



ela tinha razão, o não-envolvimento chegara em doses homeopáticas.
e chegara na precisa medida em que cada momento lembrado se dissolvia naquela torrente de subjetividade.

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nadava tranqüila. aprendeu que não há particular importância de qualquer envolvimento que não possa ser dissolvida, à milésima parte, nessa torrente de subjetividade. assim, o que resta é a memória do princípio ativo dos envolvimentos particulares, homeopáticamente adquiridos.


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domingo, 17 de janeiro de 2010

aquele ainda era um lugar estranho.
ao caminhar pelas calçadas sentia uma naúsea suave quando olhava para baixo e via
seu par de tênis sujo se misturar naquilo que parecia um mar de passos apressados.

sentia-se pequena.

pôde se organizar - o ritual, tão pessoal e particular, de organizar seu habitat duraria ainda semanas, meses. era o crescimento do Eu, egotropismo.

as esquinas e as ladeiras do lugar ainda estranho prometiam uma boa safra.
seriam tempos melhores. estava ansiosa por isso.

olhou para os tênis sujos, agora jogados indisciplinadamente no meio do quarto.
eles estavam ali, era sinal de familiaridade.


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[e no entanto foi nesse momento que perdi a paixão. de fato, a última coisa que eu queria era escrever. para mim, isso teria significado voltar-me para meu íntimo, atentar para uma vida e um período nos quais eu detestava pensar. eu estava tentando esquecer a china. fui instantaneamente arrebatada pelo lugar onde chegara, que me parecia outro planeta, e só queria passar cada minuto embebendo-me daquele novo mundo.]

. jung chang . cisnes selvagens .

sábado, 9 de janeiro de 2010


respirou fundo e fechou os olhos lentamente.
numa sucessão desordenada de flashes visitou os acontecimentos dos últimos meses.
suspirou, abriu e fechou os olhos, sorriu. pensou nas inúmeras coisas que teria que resolver no outro dia. teria que organizar o quarto, dobrar as roupas, ordenar seu habitat - esse era seu ritual mais pessoal e particular.

o gosto do ferro que lhe feriu o peito ainda não havia deixado a boca.
mas a teimosa sensação de cansaço já não a acompanhava mais. sorriu quando se deu conta disso.
sua subjetividade boiava tranqüila na torrente de sensações que tempos atrás quase lhe afogou.
os hematomas e os arranhões davam lugar à pele macia e hidratada. o ambiente familiar completava o clima favorável à organização. sentia-se como um doente saindo da enfermaria, curado e ciente de seu estado ainda delicado.
sentia sede. levantou-se e bebeu um copo enorme de água. sorriu ao sentir o cheiro de barro que vinha daquele filtro. mergulhou numa ressurgência de boas lembranças que se apresentavam pra ela muito mais sob a forma de aromas do que de imagens. aromas cítricos e frescos. sorria de modo discreto e sincero. bebeu mais um gole d´água, suspirou. parou em frente à sacada e amou a vista conhecida. os pés descalços sobre a ardósia fria lhe davam a sensação de estabilidade. foi pra cama, pensou nos aromas, no gole d´água, na vista da sacada e no piso de ardósia. estava em casa, redescobrira o acesso a si mesma. dormiu rapidamente, o outro dia era dia de organizar-se.

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