sábado, 22 de janeiro de 2011


estava de pé diante do espelho, mas não me reconhecia na minha imagem.
eu não era aquele rosto jovem e aquele corpo magro.

meu raciocínio, tão adaptado à soluções fáceis, pensou que esta impressão estranha se ligava ao fato de que eu usava uma blusa antiga.
essa blusa me remetia a uma temporalidade que há muito já não fazia sentido.
me enganei. assim que me despi e, em frente ao espelho, fiquei completamente nua, ainda me via diante de uma completa desconhecida.

a maciez da pele clara e os pêlos loiros eram para mim dolorosamente inéditos e desconfortáveis.
fui tomada por uma sensação física, concreta de afogamento - minha subjetividade estava presa dentro de uma forma corpórea que já não era eu.
não tive dúvidas, era preciso libertá-la.

foi então que com as unhas roídas comecei a arranhar a pele do braço.
horas mais tarde, depois de arrancar todas as camadas da derme, cheguei à carne viva.
a dor que sentia e a cor do sangue que escorria eram o fundamento da convicção de estar fazendo a coisa certa.
decidi que não queria mais pele em nenhuma parte do meu corpo, deixaria expostas as minhas vísceras, onde residem as contradições.
o processo durou dias e, depois de mais ou menos vinte deles, minha carcaça não tinha mais proteções.
tão dedicada à minha missão, não pude notar quando meu braço, o primeiro a sofrer com a minha aventura auto-canibal, apodrecia carcomido por moscas e vermes.

eu odiava a minha forma e estava decidida a resgatar minha subjetividade que se afogava dentro do corpo desconhecido.
eu não tinha alternativa, antes que racionalizasse a solução e tivesse medo de agir, cravei os dentes com toda a força que tinha e, como um cão faminto, arranquei um pedaço da minha própria carne.
meu sabor era acre e minha textura era tão areada que eu não tinha a sensação de mastigar algo sólido.
eu me multilava, me ingeria. não restou nenhum músculo ou cartilagem.
a minha fome de mim era tanta que eu comi minha própria língua.
me restaram os ossos, os olhos e os dentes.

é verdade, eu não era mais a mulher diante do espelho que usava uma blusa antiga.
mas aquele cadáver também não era eu.
meu estranhamento e consciência residiam nos olhos. é que eles eram a morada da minha subjetividade exilada. meus olhos eram a única saída para o desespero que a subjetividade sentia de não pertencer a corpo algum. inspirada neles arranquei cada um dos trinta de dois dentes.
minha boca sangrava muito e agora faltava pouco.
meus ossos da mão, que já haviam sido dedos, furaram meus dois olhos ao mesmo tempo.
assim que fiquei cega perdi a força.
meu esqueleto desmontou e caiu no chão.
das órbitas do meu crânio, ainda úmidas de muco, nasceu um cavalo preto.

esse cavalo preto é bruto e selvagem. esse cavalo preto sou eu.
e para que ele não se transfigure rapidamente em uma mulher incapaz de se reconhecer em si, no outro e no grande mundo, é preciso que ele seja domado em um sentido particular.

eu sei que vai doer [já doi, na verdade], mas a minha existência enquanto cavalo preto - bruto e selvagem - vai ser domada por uma explosão vermelha.

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